segunda-feira, 13 de abril de 2009

Romântico

Ela deslizava esguia e suave sobre a bicicleta,apontava de longe com os cabelos longos envoltos por uma tiara, um vestido vinho de renda e um par de sapatilhas brancas. Aportava todos os dias na minha janela me cumprimentando com um aceno e um sorriso largo de uma ponta a outra do rosto. Corávamos. Com a timidez me tapando a boca, deixei que as mãos falassem nervosas e passivas em um bilhete, ela aceitou me namorar. Na sutileza do seu sorriso perdi-me de amores, na inocência consentida da nossa infância namorávamos todas as tardes em silêncio. Dava-lhe a mão, caminhava sem falar e na despedida dois beijos casados na bochecha enquanto os dedos já ensaiavam trôpegos se separarem.

Certa vez ensaiei um Neruda dia e noite para declamar-lhe, mas a coragem sempre se despedia quando balbuciava os primeiros tons, e adiava a minha tarefa na esperança que surgisse uma oportunidade futura. E surgiu. Numa das nossas despedidas nos confundimos em um beijo, um estalar de lábios que me fechou os olhos, apagou-me os sentidos e me fez sussurrar com presteza o que Neruda havia escrito:

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

Negou-me o riso e nunca mais apareceu.

***

Seios formosos e arrebitados que me atraíam o instinto, olhos puxados e latentes que me desorientavam, pernas que exibiam um molejo frouxo e descompassado. Mas me apaixonei mesmo pelas miudezas da sua personalidade e pelos encantos que se escondiam por detrás dos cabelos negros. O primeiro toque foi desconcertante, embaraçava-me entre as mãos que me envolviam com um abraço público e nada tímido. Estava diante da caricatura do que sempre havia vislumbrado em minhas estrofes adolescentes.

Vieram os encontros constantes, a troca de confidências que ainda agora eram inconfessáveis e as promessas românticas, que não passaram de promessas românticas. Num dia frio, deitei-me sobre ela como se repousasse, mas os lábios já se tocaram ásperos, sem lacunas de repouso, os corpos já se encontraram prontos, sem tempo de delongas, e os sexos se fundiram firmes, quentes e abrasivos. Entre pontas de orgasmo buscava pares de versos, estrofes de poemas inacabados, frases soltas de qualquer literatura. Nada me vinha, a não ser soluços e gemidos de uma pele cravada em lençóis estampados.

Ao contrário da infância, na adolescência eu soube me despedir. Acordei envolto pelos lençóis úmidos e quentes e fiquei a reparando dormir – a respiração que levava o tronco para cima e para baixo, a sutileza da posição e um leve e quase imperceptível sorriso que se esboçava em um rosto tranquilo. Permaneci atento até que levei a minha boca ao seu ouvido e balbuciei um bom dia em forma de poema:

Tudo de amor que existe em mim foi dado
Tudo que fala em mim de amor foi dito
Do nada em mim o amor fez o infinito
Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fiquei proscrito
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.
Tenho dado de amor mais que coubesse
Desse eterno amor meu antes não desse.
Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.

Vinicius já previa e anunciava que aquela fora a última noite em seus braços ternos. Mas uma vez me fiz choroso, me fiz romântico.

***

Chegou simples como quem vai a um supermercado. Eu procurava enlatados e frios, ela vagava por entre as prateleiras procurando torradas e chá-mate. Nos esbarramos casualmente, me falou sobre a sua festa de formatura, sobre o par de siameses que havia comprado no Natal e sobre a viagem de seus pais a costa leste do México. Eu retruquei comentando sobre a minha festa de formatura, sobre o par de siameses que havia comprado no Natal e sobre a viagem dos meus pais a costa leste do México.

Não fui romântico, tampouco recorri aos poemas ou a literatura. Talvez pelo histórico insistente das minhas antigas meninas. Talvez porque o amor seja simples como uma ida a um supermercado ou direto como um texto curto. Só não quero mais escrever prosas românticas.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Abril Reprimido

Turvo, como um dia nublado. Repentino, como um golpe. Denso, como uma ditadura. Costumo começar pelos predicados, eles anunciam e caracterizam os meus sujeitos antes mesmo de os expor. E dessa vez o meu sujeito é uma data, que permaneceu na vida pública, social e política do país ressoando durante duas décadas.

Aquela quarta-feira de Abril estancou o sistema democrático brasileiro, reprimiu a pujante roda de aquários inaugurada pela década de 1960 e sucumbiu civis em uma ditadura. Para resguardar os seus interesses, as forças armadas articularam o maior golpe da história recente do Brasil - e o disparou há exatos quarenta e cinco anos.

O país esteve rachado por um fosso crescente entre a direita conservadora e a esquerda comunista. Os militares combatiam o movimento estudantil cada vez mais articulado, a ditadura oprimia e censurava a imprensa – salvo aquelas que não precisavam de opressão nem de censura para agir aos moldes militares.

A cultura se transformou na maior expressão de revolta. Os artistas instrumentalizaram a música, o teatro e o cinema. Teóricos alemães se destacavam entre os jovens brasileiros com suas didáticas ideologias. A direita se armava com os seus atos-institucionais, suas medidas autoritárias e com a prática insolente da tortura. Só na década de 1980 os movimentos democráticos e o esfacelamento interno dos militares iriam restaurar o sistema.

Quarenta e cinco anos depois, o nosso 1° de Abril se revela bem diferente daquele de 64. Pode até continuar turvo, repentino e denso, mas só de não abrigar mais uma ditadura militar se torna completamente avesso.