segunda-feira, 30 de março de 2009

Insólito

Eu não sei decifrar as linhas das minhas mãos, dizem que o emaranhado de filetes grossos e longos possuem uma gama de significados. Para mim, elas não passam de dobras nas articulações, já outros conseguem enxergar sem dificuldade o conteúdo de cada ramificação bifurcada espalmada nas mãos.

A verdade é que quando olhei para o outro lado me deparei com a caricatura de uma cigana, vestido vermelho rubi, forte, aceso. Olhos misteriosos, que saltavam às minhas vistas como faróis incandescentes. Dourado, muito dourado espalhado pelos detalhes do seu corpo, nas orelhas, nos pulsos, no pescoço, nos dentes. Ela me soltou um sorriso de canto de boca, queria se aproximar. Eu consenti retribuindo-lhe o sorriso.

Andou sem pressa, saracoteava, rebolava e girava a sua saia rodada enquanto se aproximava. Arrastou uma cadeira e se sentou exatamente na minha frente, sem falar uma palavra pediu a minha mão direita. Analisou cada linha com sutileza, pormenorizando os detalhes e os caminhos que faziam os pequenos filetes que compunham a minha mão.

Depois de algum tempo ela começou a dar o seu veredicto, sobre o que eu era e o que eu viria a me tornar. Conclusões tão previsíveis e genéricas que poderiam ser aplicadas a qualquer homem que estivesse sentado numa mesa de bar, fumando cigarro e tomando uísque escocês. Ela se insinuava, mostrava o decote ladeado pelos bordados caseiros do seu vestido.

Os seus olhos fuzilaram os meus e saíram em despedida, levando meu uísque e alguns trocados, que ela mesma me roubou no bolso do paletó. A multidão já ocultava o rebolado frouxo escondido pelo vestido. Na beira da calçada fiquei apreensivo, medo de atravessar e morrer como Macabéa, a noite fora muito insólita e só um desfecho como este para encerrar o meu tempo de morangos. Seria até poético morrer assim. Mas o destino foi outro, e tão imprevisível como as palavras da cigana.

Atravesso a avenida, entro no meu carro e na primeira esquina atropelo a mulher de olhos misteriosos que reinventara o meu futuro com suas previsões e esquecera do seu. Olho nos seus olhos pela última vez, mas não carrego remorso, afinal, alguém, algum dia, teria mesmo que vingar a pobre da Macabéa.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Amálgama de tons

Desde pequeno estas ruas saltam as minhas memórias. Vívidas, resplandecentes, quase falantes. Só hoje consigo entender os seus significados, silogismos decifrados no silêncio da minha introspecção. As ruas, os personagens e a cultura que a cidade abriga estão amarrados para encantar olhares atentos e os sentidos apurados de quem passa por aqui. Só Cachoeira tem esse cheiro seco, essa brisa quente e a cerveja gelada de todas as tardes. Parece que índios, escravos e senhores de engenho - e tantos outros personagens que fizeram história aqui - deixaram como herança uma energia vanguardista que habita até hoje num cenário tão tradicional e secular.

Cada rua comporta uma mistura de cores, engenharias e arquiteturas. As pessoas são falantes, festeiras e receptivas. Cachoeira é um caldeirão, de religiões, de raças, de idéias. Em cada esquina uma igreja e um terreiro de candomblé. Um apostólico e um macumbeiro. Uma beata e uma mãe de santo. Todos acabam no mesmo ritmo permissivo do resto da cidade. Por aqui se espalham poetas, pescadores, artistas, párocos, revolucionários, intelectuais, comunistas, políticos, professores, estudantes e putas. Caricaturas que povoam romances e criam grandes estórias habitando em um só canto do mundo.

Foi nesse saracotear desregrado e nesse mosaico de todos os ladrilhos que Cachoeira completou 146 anos de emancipação política no último dia 13. Parabéns, Cidade Heróica, não só pela idade, mas por tentar preservar sua identidade histórica e sua cultura popular, por receber tão bem os filhos de outras terras, por deixar suíços, franceses e baianos boquiabertos todos os dias e principalmente por transformar as diferenças em sincretismo, por ser uma amálgama de pessoas, ritmos e credos. Me encanto com os seus olhares!












Texto e Fotografias: Fernando Mota

quinta-feira, 19 de março de 2009

Prosa de Gaveta

As minhas memórias repousam em gavetas de predicados variáveis, características adversas, adjetivos avessos. Grandes, espessas, pequenas, secretas, chaveadas, abertas, públicas. Em comum carregam apenas as minhas memórias, as minhas lembranças, as minhas pequenas passagens e as pessoas - que nunca foram minhas. Hoje escrevo, leitor, para publicar estas memórias, que já viraram prosas e não cabem mais nas minhas gavetas.

Os meus pensamentos também estão depositados um a um nesses compartimentos usuais, não são lá tão passiveis de serem expostos, nem tão relevantes que possam ser lidos, mas serão publicados. As minhas gavetas teimam em se abrir e escancarar os meus pequenos aforismos, as minhas conjecturas de mesa de bar e os meus nada inéditos pensamentos.

Nas minhas gavetas também estão alguns medos, doses de insegurança, de inaptidão, sentimentos bipolares, tripolares, polipolares. Até agora fui pessimista, mas não sou de todo assim, de qualquer modo, ainda prefiro que os romances das minhas gavetas sejam constatados pelos senhores.

Juntei passos e palavras, retirei das minhas gavetas todas as prosas que pude e ei de publicá-las, porque - ainda que não tenha leitores - só o fato de escrevê-las me basta.

Madrugada, 19 de março de 2009.